“É bem o modo dos senhores procederem. Livrar-se de tudo o que é desagradável, em vez de aprender a suportá-lo. Se é mais nobre para a alma sofrer os golpes de funda e as flechas da fortuna adversa, ou pegar em armas contra um oceano de desgraças e, fazendo-lhes frente, destruí-las… Mas os senhores não fazem nem uma coisa nem outra. Não sofrem e não enfrentam. Suprimem, simplesmente, as pedras e as flechas. É fácil demais.”
Antes de explicar a citação acima, me deixe falar um pouco sobre Paulo, que nos últimos capítulos de segunda carta aos cristãos de Corinto fala com orgulho de seu sofrimento, das dores e aflições que enfrentou por propagar o evangelho. Paulo relata seus sofrimentos não para se dizer melhor ou mais cristão que os outros, mas apenas para constatar que tais sofrimentos de fato existem e se há algo que o crente deve se orgulhar, é daquilo que demonstra sua própria fraqueza.
Aquele texto lá do começo até poderia se passar por um complemento ao que Paulo disse aos coríntios, direcionada para nossas igrejas de hoje como uma crítica às nossas tentativas idiotas de viver um “evangelho” que serve apenas para satisfazer nossas próprias vontades, mas na verdade é um trecho escrito por Aldous Huxley em seu livro Admirável Mundo Novo. O texto é uma resposta do personagem John, O Selvagem, a uma sociedade cauterizada, uma sociedade que criou meios de fugir de seus próprios medos, anseios e dores, uma sociedade que em nome do prazer imediato e de uma falsa estabilidade abriu mão da condição humana e transformou todos em robôs sociais.
E o que isso tem a ver comigo? O que tem a ver com você? O que tem a ver com a igreja?
Hoje vivemos um tempo em que muitas igrejas oferecem o evangelho como se fosse uma solução para nossos sofrimentos imediatos, em que basta uma oração forte ou uma pequena contribuição financeira para que todos os problemas simplesmente desapareçam. Com letras garrafais dizendo “Pare de Sofrer” em suas placas, igrejas têm criado crentes mimados, pessoas que enxergam a vida de maneira infantil, esperando que todas as suas vontades sejam satisfeitas por Deus (ou eu deveria escrever deus?).
O grande problema é que a vida simplesmente não é assim. Em nossa natureza caída, e nesse mundo imperfeito, não existe esse papo de fim do sofrimento. E para cristãos a coisa é um pouco mais complicada. Afinal, já fomos alertados que seguir a Cristo não vai simplesmente nos afastar das lutas, dores e perseguições. É bem o contrário disso, pois seguir a Cristo não nos faz deixar de ser humanos.
Esse cristianismo adocicado que oferecem por aí acaba criando pessoas dependentes de rituais inúteis, que a cada tombo oferecido pela vida se desesperam em busca de artifícios religiosos que as tire da realidade simples, e muitas vezes dura, que é a vida. Essas tentativas de fuga religiosas são como o Soma, droga usada pelos personagens da obra de Huxley que os faz fugir da realidade sempre que algo sai fora do script. Toda vez que algum membro da sociedade perfeita de Admirável Mundo Novo se depara com uma angústia, dúvida ou questionamento, ele apenas foge.
Então ao invés de abraçarmos a religião como forma de nos aproximarmos Deus, a usamos como meio de fugir de nossos problemas, de fugir de nossa natureza para um lugar “de onde, ao retornarem, se encontrarão na outra margem do abismo, em segurança na terra firme das distrações e do trabalho cotidiano”. E assim vivemos mais uma semana até o próximo domingo.
“O cristianismo sem lágrimas, eis o que é o Soma”
Audous Huxley