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Aponta pra fé e rema - O shot

O Shot

Ela acordou atrasada como sempre. Tomou banho, um gole de suco, pegou a bolsa e foi para a faculdade. TCC é assim: mesmo que você não tenha obrigação de aparecer na faculdade é o melhor lugar para realmente se concentrar. Chato mesmo é só o caminho. Ela leva mais ou menos uma hora e meia para fazer o percurso. Onibus, trem, ônibus. Mas, em um desses veículos algo aconteceu naquele dia.

Um dos passageiros não era comum. Ele não ia a lugar nenhum. Magro e abatido entrou e começou a fazer seu pedido. Era quase uma prece por ajuda.

Era mais um soropostivo. Não tinha onde morar, por isso fez uma cabana em uma mata perto daquela avenida. Contava sua história de uma forma diferente. Ele parecia querer afeto. Carregava na mochila um pacote de “Pit Stop”, uma bolacha salgada que vem em pacotinhos, para que seu pedido não soasse como esmola. Não importa a quantia doada, ele seguia oferecendo um pacote de Pit Stop.

A maior parte das pessoas no ônibus ignorava. Parece que à medida que a vida passa a gente se preocupa menos com o outro. Foi exatamente isso que passou pela cabeça da universitária.

Ela sentiu um aperto e um grande pesar por não ter nenhuma quantia em dinheiro. Foi então que se lembrou de ter alguns chocolates do dia anterior na bolsa.

Pegou um Shot, chocolate ao leite com pedaços de amendoins, acenou para o moço e com um sorriso entregou.

No instante seguinte um sorriso meio sem dentes se abriu no rosto surrado pela vida:

– Nossa, Shot! Faz tanto tempo que eu não como um Shot! Não sei se vou conseguir mastigar os amendoins por causa dos dentes, mas muito obrigado! Você quer uma Pit Stop?

– Não, obrigada.

Foi isso. Apenas essas palavras foram trocadas pelos dois, mas foi o suficiente para fazer com que a garota passasse o resto do caminho e dos seus dias pensando sobre isso.

Quantos Shots ela já não tinha comido na vida. Quantos chocolates já não tinha comprado pelo simples fato de gostar de tê-los quando o desejo aparecesse.

Quantas pessoas como aquele homem não podiam fazer isso?

Nossa natureza humana caída responderá com naturalidade: muitas. E esse é o problema.

A pergunta é: quando foi que nos tornamos tão indiferentes? Que evangelho é esse que passa de largo por moços que não comem Shot há anos e vivem em uma cabana no meio do mato?

Vivendo pelo mundo ela percebeu que a indiferença é o mal da humanidade. O moço que chorava ajoelhado no chão gélido de Madrid querendo voltar para a terra natal recebia o mesmo tratamento do soropositivo do ônibus do Grande ABC de São Paulo.

A humanidade é desumana.

A estagiária não tem dinheiro para ajudar a todos que encontra pelo caminho. Na verdade, poucas pessoas no mundo têm. O que a fez pensar não foi isso.

Não se trata de ter dinheiro. É apenas questão de se IMPORTAR. Não nos importamos mais.

O que esse mundo tem feito conosco?