Pular para o conteúdo
Histórias de Convés - Fogo que arde sem se ver...

Fogo que arde sem se ver…

Ahoy meus caros marujos!

Certa noite eu estava em minha cabine, estudando alguns mapas náuticos, quando o som de uma conversa no convés chamou a minha atenção. Um jovem casal de marinheiros estava sentado próximo à minha janela e pude ouvir o desabafo da moça. Não que eu seja indiscreto ou mexeriqueiro, mas a garota falava bem alto mesmo.

– Você me enganou! Com essa conversa de vida em alto mar, aventuras e liberdade! E tudo que tenho feito é trabalhar dia e noite exaustivamente!

E o rapaz somente respondia com: “aham”.

– Tem mais, lembra-se de onde você me tirou? Eu tinha boa vida e luxo. Bem que meu pai me avisou.

– Aham.

Mas, pensando bem, eu era apenas uma menininha mimada, a filhinha do papai aristocrata. Aqui pelo menos as pessoas sorriem para mim por quem eu sou, e não pelo que tenho.

– Aham.

Já com a voz embargada ela continuou o “diálogo”.

– E temos conhecido pessoas incríveis né? Vivido experiências marcantes… Sabe amor eu… não consigo me ver como aquela menininha… aquela casa seria como uma prisão… principalmente sem você…

O rapaz passou abraçou sua esposa e disse:

– Também te amo.

Encostei a janela entreaberta. Sabe marujos, bem dizia o poeta lusitano:

 

Amor é fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

 

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

 

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

 

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor? 

 

Quem nunca viveu a experiência desse contentamento descontente?

Quem nunca foi surpreendido pela dor que desatina sem doer? Acredito que todos vocês sabem o que é decepcionar-se com alguém, para depois perceber esse era um motivo muito pequeno para te afastar de uma pessoa tão querida.

O profeta das lágrimas teve uma experiência marcante de conflitos de sentimentos. Devido à sua mensagem repleta de alertas sobre a iminente queda do reino de Judá, ele foi trancafiado em um calabouço, acusado de ser um falso profeta e perturbador da ordem pública. E lá, no cárcere mais profundo, Jeremias tinha sua DR com Deus.

– O Senhor me iludiu! E cai feito um patinho! Pensei que seria como aqueles profetas do passado: Samuel, Elias, Eliseu, que desafiavam regentes e eram preservados pelo Senhor. Agora veja onde estou… Preso a pesadas correntes por anunciar os seus juízos.

– Ah, quem se lembrará do pobre Jeremias? Meu nome só serve para zombarias. Algumas proferidas por amigos que viraram as costas para mim. Seguindo seus mandamentos, não tive mulher e nem filhos. Dediquei-me a esse ministério de mensagem pesada!

– Por que Deus? Por que me obrigou a sempre anunciar cativeiro e destruição? Por que só o coitado do Jeremias tinha que ir contra todos os outros profetas? Enquanto eu gritava em alta voz: RUÍNA, CATIVEIRO E DESTRUIÇÃO, eles garantiam paz e prosperidade para Judá.

– Por causa disso sou motivo de chacota e zombarias. Ah, como eu gostaria de poder ser como os outros. Viver sossegadamente, ter uma família, poder andar por Jerusalém sem escutar cochichos e risadas por onde eu passo. Quem me dera não ter o fardo de carregar mensagem tão pesada…

– Porém, quando penso em fechar os meus lábios, a minha mente traz à tona o caos espiritual dessas pessoas, e sua palavra queima em meu peito. Eu não consigo Deus! Eu sei que as pessoas ficam à espreita, esperando uma única oportunidade para me denunciar. Mesmo assim, prefiro permanecer fiel ao Senhor! Não consigo ficar calado! O Senhor conhece o coração de todos os homens, seus desejos e sentimentos. Perdoe-me por meu mimimi Senhor, sei que em breve verei o teu livramento, e cantarei louvores ao meu Deus.

Pois é marujos, eu mesmo, em alguns momentos de minha caminhada de fé, já vivi momentos de decepção e cogitei parar. Somente a forte mão do Senhor, e o seu grande amor, puderam manter esse marujo nos caminhos retos da salvação. Se algum de vocês está vivendo um momento de crise, veja nessa poesia, escrita pelo próprio Jeremias, o testemunho da fidelidade de Deus para os que preservam a fé e a esperança.

Quebrou com pedrinhas de areia os meus dentes; cobriu-me de cinza.

E afastaste da paz a minha alma; esqueci-me do bem.

Então, disse eu: Já pereceu a minha força, como também a minha esperança no SENHOR.

Lembra-te da minha aflição e do meu pranto, do absinto e do fel.

Minha alma, certamente, se lembra e se abate dentro de mim.

Disso me recordarei no meu coração; por isso, tenho esperança.

As misericórdias do SENHOR são a causa de não sermos consumidos; porque as suas misericórdias não têm fim.

Novas são cada manhã; grande é a tua fidelidade.

A minha porção é o SENHOR, diz a minha alma; portanto, esperarei nele.

Bom é o SENHOR para os que se atêm a ele, para a alma que o busca.

Bom é ter esperança e aguardar em silêncio a salvação do SENHOR.

(Lamentações de Jeremias 3. 16 a 26)

 

Citações da história:

Monte Castelo – Renato Russo

Zoeira   =D

A poesia “Amor é fogo que arde sem se ver…” é de Luiz Vaz de Camões.

Texto bíblico citado: Jeremias 20. 7 a 13