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Dois sambistas numa quarta-feira

Por Cacau Marques

“Não chore ainda não” cantava um resignado Chico Buarque numa terça feira de carnaval. “Felicidade aqui pode passar e ouvir e, se ela for de samba, há de querer ficar”. Movido pela crença de que “a vida é boa para quem cantar”, apressava-se por invocar o samba antes que raiasse o dia com todas as preocupações da vida triste. Para ele, samba era felicidade. Era a banda que enchia de alegria a cidade por onde passava, era o carnaval que o fazia brincar de rei à noite. Mas, quando a banda passava, encontrava no seu canto a dor que lá tinha deixado. Quando o carnaval acabava, a tristeza já o esperava em casa.

“Não chore ainda não”, insistia. O violão já fraquejava, a voz rouqueava. Todos já se levantavam e deixavam a roda, menos ele e a roseira plantada ao seu lado. O céu já se pintava de laranja no horizonte. “Luar, espera um pouco” bradou. “Eu tenho a impressão que o samba vem aí”. Com um último fôlego desesperado, cantava mais forte, insistia crendo que quando o samba chegasse a noite se prolongaria indefinidamente. “O próprio tempo vai parar pra ouvir!” Mas ele sabia que o tempo é roda viva que carrega samba, viola, roseira, destino, mulata, saudade. É tudo ilusão passageira levada pela primeira brisa.

Então parou. Já não tinha ninguém. Com dedos tristes tocou os últimos acordes: “Tem samba de sobra, ninguém quer sambar. Não há mais quem cante nem há mais lugar. O Sol chegou antes do samba chegar. Quem passa, nem liga, já vai trabalhar. E você, minha amiga,” (é com a roseira, que ele falava) “já pode chorar”.

Com o rosto enfiado nas mãos não percebeu a aproximação de um outro sambista, menos famoso, mas também muito talentoso. O forasteiro sentou ao seu lado e pôs a mão em seu ombro. Chico nem fez menção de olhar para saber quem era, mas o toque era agradável e leve como um choro de Pixinguinha. O outro sambista disse com voz grave, mas gentil: “Foi linda a festa. Luz, sons, sorrisos, roda de amigos e canções surgindo”. Chico se recostou no ombro do novo amigo, chorando mais forte. “Mas chegou o dia. E sumiu com a noite, toda alegria” soluçava.

A voz grave respondeu: “Todo esse tempo são recordações, que não fazem mais sentido. Pra não sofrer com as desilusões, procurar um motivo”. Era do samba que ele falava. Do samba fuga, da alegria noturna que se acaba na manhã cinzenta da quarta-feira. Chico parou de chorar e ouviu com atenção. “Hoje a festa é constante, é real! E eu não abro mão disso!”.

Por um momento, Chico pensou que o amigo desatinara. Não teria ele visto chegar a quarta-feira, acabar a brincadeira e as bandeiras se desmanchando? Não via que toda gente já sofria normalmente? Como ainda podia ser dia de festa? Levantou o olhar e viu o rosto negro de sorriso largo e franco do companheiro. Ele parecia tão certo do que dizia que a ideia de festa infinita subitamente se fez plausível. Mas como? O sorridente companheiro explicou: “Minha alegria é Cristo!”

Chico gelou. Seu rosto passou de esperançoso para frustrado. Cristo era tudo, menos samba.  Levantou-se, apertou a mão do amigo e disse um seco “Deus lhe pague”. Saiu pisando duro. No meio do caminho de saída, porém, parou. Virando-se perguntou:

– Já não é mais carnaval. Então me diga, quem é você?

– Meu nome é Sérgio Pimenta – respondeu o crente.

Depois desse dia, não mais se encontraram. Chico continuou cantando, compondo e escrevendo. Sérgio foi sambar numa festa sem fim.