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À Deriva #08 – Lembranças de um Moribundo

“Por que não morri ao nascer, e não pereci quando saí do ventre?
Por que houve joelhos para me receberem e seios para me amamentarem? Por que não me sepultaram como criança abortada?
Por que se dá luz aos infelizes, e vida aos de alma amargurada?”

O quarto estava completamente desconfigurado. O moribundo estava encolhido em um dos cantos. Repetia essas e outras frases constantemente. Suas roupas estavam velhas e apodrecidas no corpo, pelo uso contínuo. Não sentia fome, sede, ou vontade. Estava ali há dias… Quem sabe semanas, meses… Se contorcendo, tremendo, gemendo, e gritando… Não se lembrava direito quando chegara ali, suas memórias estavam bastante vagas… Mas sabia que algo tinha acontecido, algo que tinha medo de se lembrar. E só esse pensamento já o fazia explodir em lágrimas.

– Por que se dá luz aos infelizes? Por quê? Por quê? POR QUÊ!? ­Levantou-­se de súbito e chutou fortemente a cama à sua frente, terminando de quebrar o que ainda restava dela. Sentou novamente no canto do quarto, e gemeu, com a cabeça entre os joelhos.

A porta de madeira se abriu, luz ofuscando-­lhe os olhos. Era uma mulher, com aparência agradável, mas com uma expressão terrivelmente cansada. O moribundo pensou que talvez ela estivesse deprimida.
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– Está aqui sua comida. Experimente comê-­la dessa vez, se ainda pretende ficar vivo.

A porta se fechou. Aos poucos, o cheiro da comida preencheu o quarto, e ao chegar nas narinas do moribundo, o transportou para um passado não tão distante, quando sua família tinha o costume de se reunir para almoçar.
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– É meu! ­- disse uma menininha de não mais de 5 anos.
– Larga, é meu! ­- disse uma outra um pouco mais velha. Estavam em guerra pela posse da última coxa de frango.
– Parem, vocês duas! ­- Uma voz respondeu em tom firme, pertencente ao irmão mais velho. Ele pegou a coxa de frango que estava em seu prato, deu para uma delas, e acabou com a briga. ­- Não briguem desse jeito, vocês são irmãs, e precisam resolver as coisas com amor.
– Desculpa -­ responderam em coro, e meio segundo depois estavam com a boca cheia de frango.

O pai já havia almoçado, estava ali para acompanhá-­los apenas. Ficou orgulhoso do filho, que soube lidar com a situação de maneira altruísta. Seu bebezinho agora era um homem formado, e que adorava chamar a família, especialmente os irmãos e irmãs, para almoçarem em sua casa. Era um rapaz muito sábio, também, sempre aconselhando outras pessoas. Acreditava que o filho tinha herdado essa qualidade dele. A mãe era do tipo prática, não gostava muito de pensar profundamente nas coisas.

Não se achava tão sábio agora que estava tudo destruído. O quarto parecia se derreter em volta dele, como se estivesse no estômago de um monstro. Seu corpo inteiro coçava e definhava. Não era incomum ele estar em um local e posição dentro do quarto e de repente se ver em outro, sem saber como chegou ali. E ele não conseguia se lembrar… Sua dor era pura, tão pura que não havia memórias para corrompê-­la.

Uma mosca passou voando em frente aos seus olhos. Encarou­-a por um momento, até que ele a viu saindo pela janela. Ele foi junto, e voou com ela até uma plantação de trigo, onde bois e jumentos aravam a plantação. Três de seus filhos mais novos, todos com menos de 15 anos, estavam por ali assistindo, maravilhados com a força dos animais. O pai chegou perto deles e disse:
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– Vocês sabem que um dia tudo isso aqui vai ser de vocês, não é mesmo?
– É mesmo, papai? ­ disse o mais novo.
– Sim, é tudo de vocês.
– Então eu quero o Jujuba pra mim! ­- disse outro deles. Jujuba era o jumentinho mais desajeitado e engraçado daquela região.
– Se seus irmãos concordarem com isso, tudo bem.
– Mas se vai ficar tudo com a gente, você vai ficar com o que, papai? ­ – perguntou o terceiro.
O pai bagunçou seu cabelo com a mão.
– Eu já tenho tudo o que preciso, meu amor.

E conversou com eles o resto da tarde, enquanto o sol descia lentamente em direção às montanhas. Depois foi caminhando com eles em direção ao pequeno morro onde se localizava sua casa. Até que a mosca entrou novamente pela janela e estragou tudo.

Chorou por mais algumas horas, antes da porta se abrir novamente. Dessa vez eram três homens. Conforme esses homens entraram, foram reconhecidos de imediato. Eram seus amigos de infância, e todos eles também haviam ficado ricos e ido morar longe. Mas agora todos eles estavam ali.

A visão desses três fez com que ele voltasse ainda mais ao passado, na época em que os quatro brincavam juntos, estudavam juntos, falavam sobre mulheres, sobre Deus e o sobre o sentido da vida. Então as memórias avançaram… O moribundo se viu estudando, e depois casando. Viu os amigos um a um formarem suas vidas, viu­-se despedindo deles. O primeiro filho nasceu, depois a primeira filha, e depois vários filhos se seguiram, seu comércio cresceu, e acabou por criar uma condição segura para si e sua família. Ficou contente consigo mesmo, de forma que se morresse naquele instante, não teria nada de que se arrepender. E então finalmente se lembrou do que aconteceu.

Era uma tarde como outra qualquer. Pessoas trabalhavam nas plantações e cuidando do gado, os filhos almoçavam na casa do irmão mais velho, seus mensageiros levavam e traziam mensagens, e ele descansava em sua casa. Um mensageiro chegou fazendo bastante barulho.

– O que aconteceu, homem?
– Chefe, bandidos! Vieram da região ao lado do deserto, pareciam com pressa! Eles nos atacaram, e roubaram nossos bois! Quase me mataram!

Não sabia o que pensar. Ainda estava tentando absorver todas essas informações, quando chegou outro homem gritando:
– Fogo! Fogo! Fogo no céu!
– Calma, calma, como assim fogo no céu?
– Fogo, muito fogo. Caiu fogo do céu, na plantação. A plantação pegou fogo, as ovelhas morreram. A maioria dos trabalhadores também morreu queimada.

Ainda chegou um terceiro mensageiro com mais notícias trágicas:

– Chefe! Creio que não sou o primeiro a trazer más notícias! Fomos atacados pelos homens das fazendas vizinhas, e eles levaram o restante de nossos animais. Sinto muito, chefe!

A casa inteira já estava em estado de pânico. Parecia um sonho. não podia estar acontecendo tudo aquilo no mesmo dia, na mesma hora! Era como um castigo dos céus que veio sem motivo algum. Depois de algum tempo, chegou mais um homem ofegante, entrando cambaleante em casa. Mas não era um homem qualquer, era o único homem que não poderia estar ali. Teve calafrios enquanto olhava para ele, prevendo o que se seguiria. Ele se aproximou ainda ofegante. Era o servo de maior confiança de seu filho mais velho.
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– Meu senhor, preciso lhe falar. Veio um vento muito forte… ­ – nesse momento uma mão tapou-­lhe a boca. Saiu perturbado e foi para fora da casa tomar um ar. Sentiu resistência para sair, um vento forte o empurrava para dentro. Venceu o vento, e quando saiu de casa, percebeu com clareza o que acontecera.

Ao horizonte, teve a visão mais assombrosa que já vira em toda a sua vida. Um tornado gigantesco estava saindo do deserto. Já havia passado por várias cidades e vilarejos, pois os carregava dentro dele, juntamente com areia e várias árvores e objetos que estavam pegando fogo. Os pedaços de casas e de árvores eram constantemente arremessados para todas as direções, causando devastações e incêndios. Não parecia haver explicação para a existência daquele fenômeno.

O furacão estava longe o suficiente para que não atingisse a sua casa, e quando o mesmo se distanciou, pode ver ao longe o local onde deveria estar a casa de seu filho. Não havia nada além de deserto.

De seus olhos escorriam de lágrimas enquanto as memórias voltavam, frente aos seus amigos. Os amigos também choravam, pois mal o reconheciam agora em seu estado deplorável. Os amigos o abraçaram, e choraram junto com ele… Choraram por dias e dias com ele, até que ele estivesse pronto para começar a se recuperar, até que ele estivesse disposto a desabafar, brigar com eles, brigar com Deus, e por fim, começar a construir uma nova vida.

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Texto “Lembranças de um Moribundo”: Wilson Faws
Gravação, edição e masterização do áudio: Chico Gabriel
Artes gráficas: Daniel Sas (portfólio)

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